PENSANDO A CRIANÇA COM DEFICIÊNCIA: INFÂNCIA NORMAL OU “DEFICIENTE”?
Daniela Leal
“O lugar da infância na contemporaneidade é um lugar em mudança” – Sarmento[1]
Pautando-se na afirmação de Sarmento na qual refere-se à infância como um lugar de mudança, objetiva-se resenhar aqui algumas ideias e/ou contribuições dos estudos sociais sobre a infância para se pensar a criança com deficiência diante das mudanças sociais que ocorreram ao longo das últimas décadas do século XX e início do século XXI.
Isto porque, se pensar que o interesse histórico pela infância, como um todo, é relativamente recente, assim como no período de transitoriedade da ausência do conceito de infância “se anulou por demasiado tempo a complexidade da realidade social das crianças” (Sarmento, 2007, p. 26), questiona-se: quanto tempo mais demorou para se pensar a infância da pessoa com deficiência?
Para tentar responder a tal questionamento, a construção deste artigo dedicar-se-á a um breve resgate histórico da construção social do conceito de anormalidade, pautando-se em estudos como os de Bueno (2003), quando se propõe a identificar como se deu a construção da identidade do anormal no transcurso da civilização; de Plaisance (2005), ao analisar a história da infância dita “deficiente” e sua evolução e de Soares (2006), ao descrever as estratégias de observação do trabalho com a pessoa com deficiência. Paralelamente a tais concepções, tentar-se-á identificar, por intermédio de alguns estudiosos da infância (PLAISANCE, 2005; SOARES, 2006; SILVA, 2010), as contribuições dos estudos sociais (sociologia e antropologia) para a compreensão das crianças com deficiência.
A construção social do conceito de “anormalidade”
De acordo com Bueno (2003), a construção da identidade do “anormal” historicamente vem se constituindo nas sociedades por intermédio de critérios que diferenciam as características dos sujeitos que delas fazem parte. Segundo o autor, mais do que a diferença em si, as consequências destas na possibilidade de relacionamento do sujeito com o social, é que se fazem mais expressivas quando fala-se na identidade do “anormal”. Ou seja, tal entendimento “revela a incompreensão de que o lugar [...] ocupado na sociedade (e não fora dela) [pela pessoa com deficiência] é uma determinação combinada no interior da cadeia das relações entre os indivíduos (da qual ela também é parte) que compõem a sociedade” (SOARES, 2006, p. 87).
Segundo Soares (2006, p. 88), “essa forma de compreensão da sociedade parece não levar em conta que é no interior dessas relações que as regras de convivência e participação social são construídas”. Nas palavras de Plaisance (2005, p. 405), “a representação da criança portadora de ‘deficiência’ é dominada pela representação da deficiência, mais do que pela representação da criança como criança, com suas particularidades eventuais”. Parece que ocorre,
[...] uma contradição em termos entre a visão da anormalidade construída historicamente e a existência, em qualquer grupo social e em qualquer época, de indivíduos que possuem anormalidades evidentes, como a mutilação, a cegueira, a surdez, que acarretam dificuldades a esses indivíduos, independentemente das formas pelas quais o meio social em que vivem se organiza. (BUENO, 2003, p. 163)
Nota-se, assim, que a deficiência tem sido encarada de diferentes maneiras e, muitas vezes, como uma doença.
Em determinadas épocas e em determinadas sociedades ela foi vista como possessão; em outros momentos e espaços sociais foi encarada como desequilíbrio da totalidade do homem. Em outros, ainda, como reação do organismo em busca de cura; ou ainda, mais modernamente, como um desvio quantitativo do funcionamento regular do ser humano. (BUENO, 2003, p. 164)
Se pensar que tal modelo de anormalidade foi cientificamente legitimado no fim do século XIX e no começo do século XX (PLAISANCE, 2005), realmente faz-se expressiva a fala de Bueno (2003) ao colocar que, a deficiência nos tempos mais modernos ainda era vista como uma anormalidade, como uma disfunção em que ainda se pautava apenas no desvio quantitativo do funcionamento.
Nessa época, a concepção hegemônica moderna de anormalidade social pautava-se no paradigma biológico, ou seja, a ciência cada vez mais buscava distinguir o estado normal do patológico, principalmente “ao considerar a doença [deficiência] como um desvio do estado habitual (de saúde), este último manifestado pela sua maior frequência, que corresponderia às condições de vida, isto é, de sua própria manutenção” (BUENO, 2003, p. 164). Do ponto de vista biológico, não separaria as manifestações orgânicas das condições do meio; se as condições não se modificavam, se as respostas não eram organicamente satisfatórias, o conceito de normalidade ultrapassava a mera designação de fenômeno.
Entretanto, tal perspectiva foi colocada sob crivo crítico, pois, de acordo com Bueno (2003), mesmo as anormalidades de origem orgânica, interferem na capacidade de sobrevivência da espécie, o que gera consequências sobre as possibilidades de participação social do indivíduo. Consequentemente, o conceito de anormalidade social foi se tornando historicamente cada vez mais preciso, na medida em que as condições sociais foram sendo transformadas pela própria ação do homem, por intermédio de novas necessidades na relação indivíduo-meio social. Um exemplo, é a concepção da pessoa com deficiência mental – atualmente deficiência intelectual –, ao longo dos tempos.
[...] a deficiência mental, tal como a conhecemos hoje, não apenas só passou a ser identificada a partir do final do século XVIII, como foi construída na trajetória histórica de determinadas formações sociais que, gradativamente, foram exigindo determinadas formas de produtividade intelectual, as quais culminaram na caracterização de um determinado tipo de indivíduos – os deficientes mentais – que não conseguiam, em relação a essas exigências do meio (produtividade intelectual), se constituir como normativos. (BUENO, 2003, pp. 167-168).
Ainda a respeito da precisão histórica da transformação do conceito de anormalidade, Plaisance (2005, p. 409) descreve que,
Não se trata, pois, somente de uma questão de vocabulário, há patologias que persistem, outras que mudam [...] as palavras fazem as coisas. [...] Nomear e classificar é fazer existir, pois as representações a isso ligadas criam instituições e práticas. O trabalho assim em curso não revela mais somente uma lógica do saber, mas também uma lógica que funda divisões de territórios.
Ainda, de acordo com o autor,
A lógica das classificações é então uma lógica de experiências institucionais, mesmo de exclusões, de tal modo que o quociente intelectual, que só tem sentido no quadro de uma situação de exame clínico, tornou-se um critério de classificação de instituições especializadas [...]. [...] os “esquemas classificatórios”, segundo a expressão de Pierre Bourdieu (1979, p. 550), têm aqui como função principal a distinção e, no caso presente, a delimitação dos campos de ação. (PLAISANCE, 2005, p. 409)
Nota-se, portanto, que muitas das produções sobre a história da educação especial acabavam reduzindo-se, na maior parte das vezes, a simples descrições das práticas realizadas com pessoas com deficiências, descoladas do contexto social em que foram realizadas (SOARES, 2006).
A produção social do conceito de “anormalidade” ainda é, por muitas vezes, contraditória e ambígua em suas relações com o social. Apesar do mesmo ter se transformado – como descreveu Plaisance (2005), sobre a questão do vocabulário: “as palavras fazem as coisas” –, apesar de receber novas roupagens, ainda continua a se manifestar nas relações entre o social e a criança com deficiência.
Ao que se refere à infância, Silva (2010, p. 203) pontua que,
O tratamento dado às crianças e as concepções relacionadas à infância estão intimamente ligados às práticas e hábitos culturais da sociedade ao longo da história. Em se tratando da infância com deficiência, parece existir uma ênfase no critério da deficiência [...]. A anormalidade e a criança anormal acabam por colocar em foco uma infância concebida a partir de valores, significados e discursos, nesse caso biológicos, mais do que de gênero, classe e idade.
Sacristán a este respeito afirma que, as diferenças ou a diversidade têm sido constantemente submetidas a um padrão estabelecido de pensamento e conduta. E, “no caso de não se submeterem a esse padrão, são excluídos ou encaminhados para outros espaços que têm estabelecido outro padrão de conduta e pensamento” (SACRISTÁN apud SOARES, 2006, p. 103).
Pode-se dizer, portanto e com base em Victor (2012, p. 29), que a semelhança entre o conceito de deficiência e o conceito de infância está em que ambos “se constituíram traduzidos pelos olhares externos e por uma tônica universal sobrepostos ao peculiar e ao singular”, assim como foram, também, construídas ideias de inferioridade que determinam o lugar da criança e da criança com deficiência na sociedade e em todos os seus espaços.
Isso posto, percebe-se que as definições descritas ao longo da história, “se deu/dá pelo cruzamento de dois sentidos, o educacional e o não educacional. Em outras palavras, uma anormalidade construída pela/na presença, ou ausência, das possibilidades de educabilidade” (SILVA, 2010, p. 203) – fala esta, muito comumente presente no discurso sobre a permanência ou não das crianças com deficiências nos espaços regulares de ensino ou em instituições especializadas.
A este respeito, Victor (2012, p. 29) afirma que,
O acesso atual à escola regular e, particularmente, à escola de Educação Infantil de crianças com deficiência e/ou necessidades educacionais especiais pode ser o caminho para desestabilizar as ideias organicistas sobre a deficiência e a possibilidade de se construir outras concepções sobre essa criança, a partir dos pressupostos colocados pela sociologia da infância, considerando diferentes configurações de ser e estar na infância, acentuando a sua condição de criança em detrimento à de deficiência.
Ao que se refere à infância das crianças com deficiência, apesar dos avanços em termos de legislações e políticas públicas com a chegada do século XXI, pode-se dizer que assiste-se, ainda, a uma tentativa de desconstrução dos conceitos pautados apenas na “anormalidade” ou na deficiência em si, para dar lugar a um novo paradigma pautado na tomada da diferença, como um forte aporte para as transformações na concepção de infância da criança com deficiência. Entretanto, não se pode esquecer que ao pensar dessa forma, ao focar-se em uma infância cada vez mais inclusiva, não se garantirá a erradicação do caráter exclusivo, mas se buscará um lugar de mudança que vise a criança em todas as suas particularidades.
Referências Bibliográficas
BUENO, J. G. S. A produção social da identidade do anormal In: FREITAS, M. C. (org.). História Social da Infância no Brasil. 5ª ed. São Paulo: Cortez, 2003. p. 163-185.
PLAISANCE, E. Denominações da infância: do anormal ao deficiente. Educação & Sociedade, Campinas, vol. 26, n.91, p.405-417, maio/ago. 2005.
SARMENTO, M. J. Visibilidade Social e Estudo da Infância In: VASCONCELLOS, V. M. R.; SARMENTO, M. J. (orgs.). Infância (in)visível. Araraquara, SP: Junqueira & Marin, 2007. p. 25-49.
SILVA, F. T. Necessidades educacionais especiais In: SOUZA, G. (org.). Educar na infância – perspectivas histórico-sociais. São Paulo: Contexto, 2010. p. 201-218.
SOARES, M. A. L. Os processos de inclusão e exclusão das crianças e jovens surdos como estratégia de observação do trabalho escolar In: FREITAS, M. C. (org.). Desigualdade social e diversidade cultural na infância e na juventude. São Paulo: Cortez, 2006. p. 87-109.
VICTOR, S. L. A Criança com Deficiência: um estudo sobre infância, cultura, inclusão e subjetividade. Anais do XVI ENDIPE – Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino, Campinas, UNICAMP, 2012. p. 005962-005973.
[1] DELGADO, A.C.C.; MULLER, F. INFÂNCIAS, TEMPOS E ESPAÇOS: um diálogo com Manuel Jacinto Sarmento. Currículo sem Fronteiras, v.6, n.1, pp.15-24, jan./jun. 2006.