Friedrich Nietzsche (1844-1900): Reflexões sobre a segunda dissertação da obra Genealogia da Moral.
Por Giuliano de Méroe
O estudo se propõe a discutir reflexões nietzschianas sobre a segunda dissertação do livro Genealogia da Moral. O texto baseia sua reflexão teórica em obras de Nietzsche; na intepretação deleuziana do pensamento do filósofo alemão, apontamentos em sala de aula do Prof. Peter Pál Pelbart, e em um romance de Dostoievsky.
Nietzsche com sua bem conhecida corrosiva e agressividade de pensamento refletiu sobre a culpa, má consciência e ressentimento, relacionando-os com as noções de castigo, vingança e justiça.
Relacionaremos conceitos como justiça, justo, injusto, com uma genealogia das forças em Nietzsche. Na sequência serão relacionados outros conceitos como má consciência, castigo e culpa, também segundo a esteira do pensador alemão.
O autor desenvolve a ideia de que o desejo de cumprir determinada vingança, ou castigo sob o nome da justiça, é um sinal da atuação de forças reativas exercendo um tipo de revide, contra aquilo pelo qual se considerou ofendida e, no entanto, para Nietzsche tal revide se justifica a si mesmo, por ver-se emasculado de uma vontade de potência mais criativa, uma força espontânea.
Nietzsche, seguindo esta esteira, introduz as definições de forças ativas e reativas. A primeira é aquela cuja agressividade é uma forma de criação. Agressividade consoante à filosofia do escritor alemão é uma afirmação daquilo do que trás potência para vida e o pensamento. A segunda por outro lado, são forças de conservação, reatividade. O homem circundado pelas forças reativas, somente guarda para si o que sente, reage às circunstâncias o que vicia profundamente seu julgamento sobre fatos.
É em razão disso que, segundo o autor, a administração do direito sempre coube aos homens ativos, àqueles fortes e espontâneos. Para Nietzsche a justiça se constitui como “a boa vontade entre os homens de poder aproximadamente igual, de se colocarem em acordo entre si (...)”
O Direito representa, para o autor, a luta contra os sentimentos reativos. A instituição da lei, segundo Nietzsche, é a chave para conter impulsos do ressentimento, pois a lei declara imperativamente tudo àquilo que é permitido e o que não é, e através dela pode-se desviar os sentimentos do ofendido conseguindo o oposto da vingança: a partir da lei o fato é visto de modo impessoal, e o que é considerado justo e injusto depende das disposições legais, e não enxergado a partir de um ou outro polo ou esfera de poder.
A instituição da lei irá definir o que é justo, permitido. Ela obterá com isso a contenção do espírito de represália vingativa. O individuo que deixa guiar-se por ela, enxergará somente o que convém ao seu ponto de vista, e o que corresponde e combina com seus anseios e sentimentos. Na presença da lei, a avaliação dos fatos, esvazia-se de qualquer viés pessoal, e torna-se com isso impessoal. Partindo de uma instrumentação legal, derivam-se as ideias de justiça e os conceitos do que é justo ou injusto.
Seguindo Nietzsche a justiça, do ponto de vista das forças, origina-se daquelas reativas e seus derivados, como má consciência, ressentimento, vingança, enfim... impulsos de um estado reativo do homem. O estado reativo possui duas características: ele não age, somente reage, e Nietzsche qualifica esse estado como uma força ‘fraca’, porque, além disso, impede e bloqueia a força criativa de seu poder criativo, separando-a do que ela pode.
A segunda característica é que a força fraca furta-se a exteriorizar seus impulsos primitivos, acumulando-os, e dessa forma envenenando-se em função de guardar para si todo o impulso, ódio e vingança. Neste estado de reatividade, o que se entende por justiça, não passa de uma ‘vontade de revide’, e concretização de sua necessidade de vingança, legitimado pela urgência em descarregar toda carga do ressentimento.
A agressão neste caso é um tipo de destruição negativa, que se justifica a si mesmo, em função de sua própria reatividade quanto aos fatos e estímulos, pelos quais é atravessada.·.
Para a abordagem nietzschiana das forças, justo ou injusto surge de um diferencial das forças ativas e reativas em relação. A agressão ou destruição dependente da força que se apropria. A destruição, investida de uma força criativa, assim o faz para afirmar tudo o que potencializa a vida, desintegrando tudo o que a desvitalizada. Revés disso é a destruição ressentida, aquela que destrói sob o signo da nulidade.
Segundo o autor de genealogia da moral: “Falar de justo e injusto em si carece de qualquer sentido; ofender, violentar, explorar, destruir não pode ser naturalmente algo “injusto” na medida em que essencialmente, isto é, em suas funções básicas, a vida atua ofendendo, violentando, explorando, destruindo, não podendo sequer ser concebida sem esse caráter.”
A culpa, para o autor, tem seu sentido fundado por um conceito anterior, o da dívida. O devedor precisa dar garantias ao credor, e caso aquele não possa cumprir com sua obrigação, o credor fica autorizado a impor-lhe um castigo. E ao atribuir o castigo, pode escolher aquele que mais lhe pareça à altura do dano que lhe foi causado pelo agente devedor.
De acordo com o parágrafo anterior, percebe-se que o que o credor na realidade quer é uma forma de recompensar a si mesmo e assim poder triunfar sobre o credor, a partir do momento que executa o castigo. Ele consegue assim incutir no devedor, um sentimento de culpa, desprezando, maltratando-o na medida em que o considera um infrator.
O fazer do outro, objeto de sofrimento, torna-se um prazer gratificante, do ponto de vista das forças reativas. Esse prazer de vitória é o que chamamos de trinfo do mesquinho, vitória do fraco ou do escravo, sobre o forte ou sobre o senhor. Hoje em dia não é difícil perceber situações de empatia total com esse tipo de crueldade. Na visão de um genealogista da moral – aquele que cartógrafa as forças do pensamento (Nietzsche), são as forças reativas arrastando as forças ativas para o seu próprio terreno.
Os genealogistas da moral segundo o autor encontram no castigo uma finalidade qualquer que o justifique, como por exemplo, vingança, e a colocam como a origem do castigo. Para ele, porém, a finalidade não pode ser empregada como gênese de algo, na medida em que os dois conceitos diferem totalmente já que a existência de algo é sempre reinterpretada, transformando-se para novos fins, de acordo com a vontade de um poder superior o qual lhe subjuga.
Nesse processo de assenhorear-se, o sentido e a finalidade são obscurecidos e assim nada se compreende acerca de sua gênese. Desse modo, tomou-se o castigo como invenção para castigar, mas para Nietzsche todas as utilidades não passam de indícios de que uma vontade de poder subjugou algo menos poderoso definindo um novo sentido de uma função até que outra força mais poderosa lhe imprima novo sentido, numa cadeia sucessiva. Assim, pode-se dizer que a perda do sentido está entre as condições para o progresso o qual surge em decorrência do maior poder o qual é sempre imposto a poderes menores.
Quanto ao castigo, este obedece a uma historicidade com o costume, uma sequência rigorosa de procedimentos. Por outro lado, é fluido o sentido dado a tais procedimentos. Pressupondo que o procedimento tenha sido interpretado no próprio procedimento o qual já existia há muito, a fluidez seria proveniente de uma síntese do que se considerou castigo ao longo da história, por isso o conceito nos dias atuais não pode ser visto separadamente, nem pode ser dissociado dos outros conceitos os quais permearam a história ao longo do tempo, sendo então resultado de um processo de “condensação” do castigo considerando todos os sentidos os quais já lhe foram atribuídos. Quanto mais se retorna ao passado mais fácil se torna a busca pelo conceito individual de castigo em cada época e assim pode-se perceber quão diverso ele pode ser, adequando-se aos objetivos de seu senhor.
A crença geral é no sentido de que o castigo acaba por incutir no culpado o sentimento de culpa, desenvolvendo então a “má consciência”, o remorso. Porém, se olharmos com atenção podemos perceber que o castigo, de modo geral, na verdade, apenas torna mais frio e resistente o indivíduo, e é a partir dele que o sentimento de culpa é detido (pelo menos no que se refere à violência punitiva) na medida em que o infrator percebe que apesar de ter cometido um crime a justiça se utiliza de diversas formas para condená-lo, as quais são tão desprezíveis quanto o seu comportamento, pelo qual o julgam.
Seguindo essa análise Nietzsche admite que o castigo possa domar o homem, contra seus impulsos, mas não pode torna-lo um homem qualitativamente melhor, dotado da ‘ grande saúde’. Gilles Deleuze, na esteira de Nietzche, entende que a ' grande saúde', é a capacidade do homem de transitar por diversos estados, passando por intensidades muito diversas, desde a forma de ver o mundo de um doente ou criminoso, como a de um estudioso abonado com saúde física intacta.
O castigo apenas pode infundir-lhe medo, raiva e impedi-lo de suas a ações. A coerção pode domestica-lo, porém não o força a refletir e pesquisar mais sobre si mesmo.
A má consciência é um estado doentio cultivado pelo homem, a partir do momento em que começou a julgar seus impulsos, e assim reprimir suas forças mais íntimas e de sua própria natureza.
Esse movimento de interiorização do homem, além dos valores que os reforçam e as filosofias que os contornam, são o principal inimigo e alvo da corrosividade intelectual de Nietzsche.
Causticidade intelectual, justificada, na medida em que esses instintos aprisionados começaram a envenenar o próprio homem, sendo este auto envenenamento, a origem da má consciência.
O homem torna-se um ‘ escravo’, quando está a serviço cego dessas forças que reprimiu sem si. Mas o homem ressentido ou mesmo vingativo, é também um sujeito muito interessante. Como diz Dostoievksy, no romance Recordações da Casa dos Mortos (1861): ”Acredite: existem naturezas profundas, fortes, maravilhosas, e como é bom descobrir ouro sob uma casca rude”.
A agudez de Nietzsche sobre a má consciência, em intensidade, equivale à vontade apaixonada do romancista russo em perscrutar esse terreno difícil da consciência. Dostoievksy, sob o pseudônimo de Alexander Petrovitch narra em forma de romance, sua experiência de vida no presídio. No romance podemos nos deparar com temas parecidos com os da segunda dissertação da genealogia da moral, tais como culpa punição, e vontade de triunfo do escravo.
Pressupomos que na leitura de Nietzsche, esses casos sejam o limite das consequências do que acontece ao homem, quando é violentamente coagido pela visão normativa do Estado. “Uma raça de conquistadores e senhores agiu de forma organizada a fim de subjugar essas pessoas, que apesar de superiores em número, nada fizeram para resistir” ( Nietzsche).
Do ponto de vista da moralidade dos costumes e tradições, os costumes, a cultura ou a norma, em primeira instância, servem de modo pertinente para garantir condições da vida e sobrevivência do homem.
O problema decorrente disso tanto para o filósofo como para o romancista, é que esses organizadores, apenas com a visão normativa, favorecem as forças de conservação da espécie, mas levadas a cabo, suas consequências são danosas para certa liberdade criativa, que advém daquilo que por sua natureza, não pode ser previsto ou assimilado no corpo da lei.
A liberdade (no sentido das forças reativas, não do ponto de vista sociológico do contrato social) não mais vigora. Tudo foi feito para impedi-la, porque ela não pode ser detectada com instrumentos preparados para a segurança.
Nas comunidades antigas, a tribal, é uma tradição, a geração mais nova reconhecer suas obrigações com as gerações anteriores. Obrigação que decorre dos atos, obras e todos os feitos dos antepassados.
As gerações reconhecem também uma espécie de dívida com os antepassados, em função de seus esforços, as quais elas podem caminhar com vantagem, sem perceber o quanto de luta foi necessária!
O desdobramento dessa lógica, porém, resulta em outras consequências. Pois se a geração torna-se muito poderosa, seu débito em relação aos antepassados também é maior. O medo também se prolifera exatamente por causa dessas dívidas.
Os antepassados dessas gerações que se tornam muito fortes e poderosas adquirem uma dimensão de poder... poder divino, e segundo Nietzsche, essa é uma das formas da origem dos deuses.
A humanidade recebeu como herança desses deuses, o peso das dívidas não pagas e o anseio por cumprir com as mesmas, daí sua imbricação com os sentimentos reativos. Pode-se dizer então que o sentimento de culpa não parou de crescer durante milênios à medida que também cresceu a fé em Deus.
O filósofo assaz, afirma que o surgimento do Deus, principalmente o deus cristão, trouxe consigo um grau muito forte do sentimento de culpa. A afirmação de Nietzsche “Deus morre”, interpretada muitas vezes de modo reativo, por aqueles que querem ‘usar Nietzsche para seus próprios fins’, significa para quem que deseja somente alargar seu espírito, ao deparar-se com Nietzsche, quer dizer a morte do homem mesquinho.
Se o surgimento do Deus cristão é uma forma expressão máxima da divindade, o ateísmo, para o autor, é uma espécie de segunda inocência e libertação desse sentimento de culpa ou dívida. Um começo para se libertar dessa malha reativa.
A consequência da moralização dos conceitos como culpa má consciência na relação entre credor e um devedor, é que a má consciência se instala de um modo, que mesmo o pior do castigo, não poderá por um fim no processo. O devedor estará em eterna penitência e do mesmo modo o credor, é consensualmente castigado e se auto condena, por causa do princípio do mau. Sua compensação seria se sentir um pai necessário para o devedor, pelo qual aquele se sacrifica para salva-lo.
Nietzsche pode ser considerado cruel por muitos, principalmente por teólogos cristãos, devido a sua abrasadora forma de apontar os problemas nocivos que a dívida com Deus se impôs ao próprio homem.
Antes a vontade de castigar e ser castigado tornou-se ainda maior, algo muito além do que a mera disciplina dos instintos. É algo muito temido pelo pensador: A destruição do homem, pelo próprio homem mesquinho. O que dentro de sua filosofia é chamado de ‘ vontade de nada’, uma destruição que subtrai o homem de sua força, bem diferente da destruição do homem criativo, que não excluiu nem subtrai nada, molda-a e afirma o que trás potência para a vida.
Referências bibliográficas
DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1976.
DOSTOIÉVSKI, Fiodor. Recordações da casa dos mortos. Tradução de Nicolau S. Peticov. São Paulo: Ed. Nova Alexandria, 2015.
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. In: ___. Obras incompletas. Seleção de textos Gerard Lebrun. Tradução e notas de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril, 1983. (Coleção Os Pensadores).
___________Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.