As dimensões dos saberes em 'Um Prelúdio para Ilse"

As dimensões dos saberes em 'Um Prelúdio para Ilse"

As dimensões dos saberes em “Um Prelúdio para Ilse”

Por Alexandra Vieira de Almeida
Escritora e Doutora em Literatura Comparada (UERJ)

 

Em “Um Prelúdio para Ilse”, este novo romance de Francisco Antonio Cavalcanti, temos as faces do saber sendo engendradas pelas mãos hábeis deste escritor excepcional, que deleita seus leitores educando, como na tradição horaciana. A relação narrador-leitor é de ensino-aprendizagem, premiando o receptor com as dimensões mais variadas do saber, nos ensinando sobre a arte, a geografia, a história, a política, a gastronomia entre outros conhecimentos formidáveis. O livro é dividido em um prólogo, 15 capítulos e um epílogo.

Logo no início, o autor revela sua experiência pessoal no campo da ciência exata, a matemática, para, a partir da literatura, expor a lei do acaso e a probabilidade dos eventos. A reflexão do pensar/saber toma sua obra, com o olhar do criticismo a nos ensinar sobre os aspectos teóricos do conhecimento abstrato. O que é imensurável ganha contornos de concretude e observação. Não é uma mera hipótese, mas um constructo bem elaborado que nos faz pensar, como leitores inteligentes.

O narrador diz para o leitor, que é levado pelo mistério do saber, não enciclopédico e empoeirado, mas educativo e pragmático: “Ademais, é essa consciência que pode nos levar a refletir sobre o fato de que somos o resultado de uma série de acasos”. Isso foi muito importante na época em que os cientistas se referiam à Teoria do Caos, em que os fluxos da vida não estavam conduzidos por uma logicidade qualquer, mas pelo azar que nos acomete, gerando o caos. É como se numa rede de linhas, aquilo que acontece em uma região interferisse em outra esfera, conduzindo-nos ao transbordamento dos sentidos, sem que uma contenção mais rígida estivesse presente. O acaso é o espaço da liberdade. E Francisco Antonio constrói ao longo do romance, a partir de suas personagens e ações, estes espaços das dimensões enigmáticas da vida que são refletidas em amplos saberes.

O autor até cita um poema escrito por ele, “Aleatório”, misturando a prosa e a poesia, os vários estilos de escrita na sua urdidura narrativa bem tramada. O que pareceria distante e incomunicável ganha relações implícitas e vizinhas, como entre o poético e o prosaico, o científico e o literário. Predominantemente, pensamos que não poderia haver um casamento entre a Ciência e a Arte, mas Francisco Antonio torna este flerte entre saberes tão díspares, possível, revelando assim a máxima heraclitiana das imagens do arco e da lira, um pré-socrático que tornou viável a “harmonia dos contrários”. E Francisco Antonio, de forma magnífica, consegue esta difícil proeza, unindo o matemático e o artístico, com seu conhecimento da engenharia, sua base de formação acadêmica, misturando a referencialidade da sua experiência como engenheiro e sua obra, magnetizando a literatura com o real mais fecundo.

Um diálogo é possível. O autor costura com maestria seu romance em que os pares de personagens se relacionam numa fronteira tênue entre a realidade e o imaginário. A partir de uma provocação de um aluno, Cavalcanti duela com a linguagem, trazendo do real para o interior das páginas magníficas de seu livro toda a atmosfera criativa de suas veias abertas ao desconhecido. Ele diz: “... a realidade parece copiar a ficção”. Logo no capítulo 1, temos a articulação do tempo bem marcada, 1984, o presente da narrativa, enquanto o passado é a memória seletiva em outro país, a Alemanha, a tragédia do nazismo e o que isso acarretou para os avós de Erna, uma das protagonistas do romance, que é musicista e vive na Argentina com seu avô Matthias. Vemos, nesse momento, o lirismo em meio ao caos urbano e, mais uma vez, aqui, temos a poeticidade de sua narrativa cheia de segundos planos. Francisco Antonio nos conduz por uma história fascinante, impregnada de detalhes e minúcias, com vários encadeamentos imprevisíveis no final do livro, que reserva a cereja do bolo para o grand Finale, a surpresa maior com que ele presenteia o leitor, quebrando a sua expectativa com invejável desenvoltura. Seu livro se agiganta com essa característica do fator surpresa, que nos arrebata e desconstrói.

Somos inicialmente apresentados a um dos protagonistas, Rodolfo, um brasileiro que vai à Argentina participar de um Torneio Sul-Americano Marista de xadrez, saindo vencedor. Ele se apaixona à primeira vista por Erna, que deixa cair um relógio de pulso valioso e que Rodolfo apanha após ela já ter ido embora. Eles se veem naquele momento e são levados por uma força de atração irresistível. Rodolfo nada sabia sobre ela e fica preocupado, sem saber se vai encontrá-la novamente para lhe devolver o objeto precioso. Outro fator de relevo na obra de Francisco Antonio é a preocupação com a origem das coisas, com a genealogia dos elementos importantes. Isso aparece em vários momentos, de maneira a educar o leitor a partir do Humanismo de sua visão esclarecedora. Por exemplo, temos a história do xadrez, com suas regras, métodos e alterações, ao longo do tempo. Quanto ao aspecto formal, Cavalcanti divide dentro dos capítulos as partes com asteriscos, dando uma pausa, uma expiração após uma inspiração de palavras, fazendo uma relação paradoxal entre a linguagem e o vazio.

Esta perda do relógio de Erna será o leitimotiv para os vários flashbacks, em que o avô de Erna, Matthias, volta ao passado para falar de seu romance com Ilse imerso na terrível circunstância do holocausto com toda a destruição e sofrimento causados pelo nazismo. Aqui, as personagens se tornam também narradoras, dividindo o espaço com o narrador principal. Já é uma característica de Cavalcanti fazer esse diálogo entre os tempos, unindo e relacionando o presente ao passado, revelando ao leitor as múltiplas facetas do tempo. O livro é feito de “afetos”. É mais importante o amor do que o bem material. Os bens aqui são outros, tocando os lábios da imaterialidade, do invisível indizível. Rodolfo e Erna têm suas especialidades e competências, sendo a partir da meritocracia, premiados por isso. Os conhecimentos são diferentes, ele, a engenharia e o xadrez, ela, a música, como o avô, que enquanto estudante em um conservatório de música, apaixonou-se por uma linda colega. Essa linda colega, Ilse, tocava piano e Matthias, violoncelo. Só que este passado é ligado a uma tensão, um conflito insondável, pois Matthias é judeu, e Ilse, alemã. Seus encontros foram proibidos pela mãe de Ilse e eles passam a viver um amor clandestino, acobertado, como nas boas histórias de amor. Ele trabalhava no comércio de relógios. A tragédia era a face macabra daquela família, pois Matthias acaba se separando de Ilse, sendo levado a um campo de concentração.

Quando o narrador fala de Dresden, temos a história do lugar, com referências extraliterárias. Além disso, os conhecimentos de música unem magistralmente o real ao ficcional. Os movimentos e ruídos do local nos fazem voltar ao início da narrativa, com as diferenças dos sons das épocas, ao mostrar o paralelismo entre presente e passado, revelando ao leitor os elementos específicos e a tecnologia de cada período. Tanto aqui quanto lá, há um cruzamento de vidas. Ilse não suportava seu primo, que era obcecado por armas, luta e guerra. Adepto do nazismo, era convencido e arrogante. Ele nutria um desejo por Ilse, para sua ira, não correspondido. Aqui, temos na família de Rodolfo um paralelo. Seu pai é autoritário e não trata bem os funcionários de sua empresa, o que leva Rodolfo a rejeitar qualquer possibilidade de trabalhar com ele. Pretende fazer uma pós-graduação em engenharia para ser professor. As linhas tênues entre passado e presente são quebradas, trazendo as inúmeras possibilidades da escrita numa narrativa envolvente. Outro elemento importante na história é a paisagem. Francisco Antonio nos pinta quadros, como propõe a expressão “a poesia como pintura”, de Horácio, relacionando a escrita à pintura, pois Cavalcanti faz descrições minuciosas das regiões, levando-nos a visualizar quadros com seus impressionantes detalhes. Observa-se a delicadeza nas descrições das características tanto externas quanto internas das personagens. São verdadeiros quadros vivos de sua escrita afiada e detalhista.

Enquanto o passado da família de Erna é amplamente conhecido e divulgado pelo narrador, o passado da família de Rodolfo é um enigma, um mistério, revelado de forma imprevisível a certa altura da narrativa, que ainda guarda grandes surpresas. Esse passado nebuloso tem o condão de criar um clima investigativo no romance. Outro fator importante no seu livro é o intenso trabalho de reconstrução de épocas, com belíssimas cenas magistralmente narradas e cenários realisticamente descritos. Uma arte de perfeição conduzida pela pena aguçada de Cavalcanti. Em tempos mais recentes, na Argentina, o avô de Erna consegue contribuir para que a justiça seja feita contra alguns ex-oficiais da SS, através de um cuidadoso e sigiloso trabalho de busca para captura e julgamento desses nazistas. Vale notar que o autor, volta e meia, nos conduz pelos meandros da coincidência e do acaso, a exemplo do concerto em que Rodolfo se reencontra com Erna. E temos, assim, a afirmação da epígrafe do livro de Cavalcanti, do escritor Charles Dickens: “A dor da despedida é insignificante frente à alegria do reencontro”. E, nas frases do filósofo Pascal a quem me reporto, encontramos: “O coração tem razões que a própria razão desconhece”. Além desses elementos conteudísticos plenos e moventes, avulta a força da forma estilística, pois o autor, além de misturar poesia e prosa, utiliza o gênero epistolar em sua narrativa instigante, fazendo de sua obra um universo multifacetado de saberes e formas. Tanto no passado quanto no presente, curiosamente, as personagens também se comunicam por cartas.

Portanto, no seu romance excepcional, Francisco Cavalcanti a partir dos vários conhecimentos, como a história e a geografia, potencializa a relação tempo/espaço, com a genealogia das pessoas, coisas e saberes, como a origem dos relógios Junghans e dos conhecimentos típicos da culinária, com as degustações das personagens através de pratos típicos. O livro apresenta um alto padrão de cultura, inserindo em seu corpus o cinema, a gastronomia, a música e, até mesmo, a engenharia. A importância de um objeto também é revelada, o seu ontem e seu hoje, com um valor grandioso do afeto, pois o seu livro é permeado pelos “afetos”. O tio de Ilse, por exemplo, um frade, é compreensivo e atencioso com ela, revelando a face diferenciada de uma religião que poderia parecer rígida, mas que pelo afeto ganha contornos de beleza e contentamento, pois é ele que a ajudou num momento mais difícil de sua vida, rompendo com os padrões religiosos. No outro lado do afeto, o ódio, interesse e desafeto das pessoas, pois, inicialmente, a família judaica de Matthias conseguia a liberdade a partir da propina a um chefe de polícia na época do nazismo com seus algozes. Mas isso não dura todo o tempo. Se, no passado, era a Alemanha, aqui, no presente narrativo, havia o lá, na Argentina, e o cá, no Brasil, até mesmo nas suas contextualizações políticas, minuciosamente analisadas e criticadas pelo narrador.

Temos, assim, nesta obra fascinante, a figura do “escritor-pesquisador”, que dá verdadeiras aulas sobre as dimensões dos saberes na sua escrita. Mas suas aulas não têm o viés didático enclausurado. São aulas críticas sobre os vários assuntos, revelando-nos o seu poder de análise e criticismo. O seu viés pedagógico é, ao mesmo tempo, reflexivo, nos fazendo pensar sobre nossa realidade. A relação de aprendizagem com o leitor é cativante, não deixando que a força lúdica do literário desapareça. Ao contrário, o jogo literário é enaltecido com belas cores. O narrador ata as duas pontas, como diria Machado de Assis, do início ao fim da narrativa. Além disso, a riqueza de mesclar descrições técnicas com as psicológicas é impressionante. As imagens cruéis e impactantes da guerra são mostradas, os bombardeios em face da morte. Mas a delicadeza se casa com a crueldade, unindo, belamente, o lirismo à realidade mais chocante. O sadismo do opressor é apresentado, ao mesmo tempo em que o “afeto” lhe tira a máscara, revelando a persona do amor. No meio dos escombros, encontramos a esperança, aquela que fica no fundo do baú de Pandora.

Que este livro magnífico traga alento e beleza para os corações dos leitores, apontando as flechas de Eros para a sensibilidade deles. E que os saberes dessemelhantes consigam obter as suas relações inusitadas em cada livro desse escritor admirável que é Francisco Antonio Cavalcanti, um nome marcante na nossa literatura.

 

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