"A SÉTIMA PROFECIA" - ESCATOLOGIA E MILENARISMO NO CINEMA
Danielle Grisi
Ricardo Fabião
A Escatologia
Não se pode abordar escatologia, sobretudo no Ocidente, sem levar em consideração a influência do cristianismo sobre o nosso modo de enxergar o mundo e de conceber a nossa existência. Certamente hoje mais do que em qualquer outra época, principalmente diante da crise das utopias, das investidas selvagens do capitalismo neoliberal em nossas vidas, da assustadora onda de violência e corrupção, tem-se criado uma atmosfera de perplexidade e de pouca esperança nas ações humanas.
Esse clima de desesperança e de caos é bastante propício para que se retome uma discussão que acompanha a humanidade desde sempre: o fim do mundo. Para os mais religiosos, a recorrência de eventos que fogem à normalidade, seja de ordem natural, como tempestades, enchentes e tremores de terra, seja de ordem social, como as doenças e a fome, são prenúncios de que o fim dos tempos está próximo.
Muitos acreditam que a humanidade só terá um conserto se houver a intervenção de Deus em nosso meio; acontece que para eles ‘consertar’ o mundo significa pôr um fim no mesmo. Ainda segundo esse ideário, a vida após o fim será perpetuada num plano espiritual. A Terra, como a conhecemos, deixará de existir. Esse evento, acredita-se, será complementado com o Juízo Final – quando todos serão julgados por Deus.
Essa intervenção divina com tal propósito pode parecer um tanto absurda para alguns, todavia, há quem acredite firmemente nessa possibilidade. Observemos as palavras de Renold Blank (1993), doutor em teologia, extraídas de sua obra Nosso mundo tem futuro: “Um mundo sem esperanças afunda em crises de sentido cada vez mais profundas, nenhuma promessa de satisfação consumista poderá encher o vazio nos corações de seus integrantes. Nessa situação surge mais do que nunca a necessidade de anunciar e de proclamar, a um mundo carente de esperanças, a grande mensagem do Reino de Deus”.
Esse “Reino de Deus” mencionado pelo teólogo é o lugar do “tempo seguinte”, trata-se do espaço celestial onde passarão a viver os escolhidos, ou seja, aqueles que seguiram fielmente os preceitos cristãos ao longo de suas vidas (isto, segundo a crença cristã). Nesse sentido, podemos observar que essa escatologia tão defendida por alguns grupos não tem apenas a intenção de ‘consertar’ o planeta, mas a de punir aqueles que não atingiram requisitos exigidos pelo citado segmento religioso.
Quando a discussão toma esse caminho abrem-se brechas para que o ideário do fim do mundo seja considerado como uma argumentação bastante controversa e de pouca consistência; já que Deus, mesmo sendo criador de todo universo, estaria privilegiando apenas um grupo de pessoas em detrimento de tantos outros. Caberia indagar por que razão destruir um planeta inteiro para salvar adeptos de um só segmento religioso. É certamente uma tarefa gigantesca para um propósito deveras específico.
Desse modo, pensar escatologia por aqui é conceber o fim do mundo com o propósito de se viver uma vida eterna ao lado do Deus cristão. Ainda assim, há muitos que contestam a veracidade do ideário do fim do mundo. Primeiro, pelo excesso de elementos fantásticos que envolvem o tema, tornando-o cientificamente inconcebível; segundo, por estar estritamente relacionado às religiões. Sabe-se que muitas delas são acusadas de manipular o pensamento humano com objetivos de enriquecimento. Não significa dizer, porém, que mesmo entre os descrentes não haja bastante curiosidade e especulação acerca do assunto.
Essa difusão desenfreada do tema escatologia abre espaço para o surgimento de muitas inverdades (eventos que não constam nos livros sagrados), que se espalham rapidamente, sobretudo nos dias atuais, em que se pode contar com a ajuda da internet como instrumento propagador. Não são poucos os e-mails sem autoria que circulam no mundo virtual acerca desse tema. De certo modo esse tipo de procedimento termina por banalizar a escatologia, reiterando para alguns sua natureza fantasiosa e pouco consistente.
O ideário milenarista
O salto tecnológico vivenciado pelo homem nas últimas décadas, sobretudo no que diz respeito aos meios midiáticos e informativos, muito tem contribuído para a consolidação de um pensamento bastante materialista; e por que não dizer facilmente propenso a rupturas com o mundo das crenças e das tradições populares. Crê-se mais facilmente no lógico, no palpável, naquilo que pode ser explicado pela ciência. É fato dos nossos dias.
Esse materialismo poderia reinar absoluto em nosso tempo, já que o ceticismo que lhe é inerente está sendo impulsionado por uma crença cada vez mais forte na força do ser humano como único autor de sua história, isso sem mencionar a comprovada força que possui o poder econômico, que contribui consideravelmente para a consolidação desses valores materialistas.
Curiosamente esse mergulho desenfreado em um mundo tecnológico e robotizado tem facilitado o retorno de ideários religiosos referentes ao final do mundo, que pareciam estar adormecidos em meados do século XX. Juntamente com esses rumores sobre o fim dos tempos percebe-se uma crescente histeria religiosa em todo planeta.
Alguns grupos religiosos fundamentam-se em torno do ideário do fim do mundo; tentam precisá-lo com datas; enumeram eventos, estipulam castigos, arriscam incluir-se entre aqueles que alcançarão a salvação. É tomando como base esses fundamentos que se constrói a maior parte dessas narrativas sobre a escatologia.
Conhecer o futuro sempre foi um dos ideais da humanidade, que, já tendo ciência do passado e do presente, teria com o futuro ao seu dispor a completude do seu conhecimento. Experimentaria o total domínio sobre o tempo e o espaço. Mas o futuro está lá, onde não se chega com o pé no presente. Assim, as narrativas aproveitam essa porção não preenchida dentro da história humana e criam esse ‘encontro’ com o futuro à sua maneira.
Embora muitos enredos de livros e filmes tenham sido criados à revelia, percebe-se que em grande parte a escatologia presente nessas narrativas está relacionada à religião de alguma forma. Mesmo quando essa ligação não é tão explícita, ainda assim percebem-se elementos que identificam tal relação.
Em geral, muito mais do que sinalizar novos tempos, a escatologia funciona em algumas narrativas como um depurador da má conduta dos indivíduos em todos os sentidos – o fim do mundo não ocorre apenas para que se possa refazê-lo, mas para aniquilar aqueles que se desviaram das leis e das regras determinadas.
O sentido da tragédia, da catástrofe, e, de certo modo, do desconhecido, quando abordados nas narrativas, levam o homem a refletir sua autonomia sobre a própria vida. Em geral, fazem-no pensar que ocupa um pequeno aposento no grande plano que é o universo e suas leis.
No que diz respeito ao Ocidente, essas imagens do fim dos tempos foram fortemente divulgadas pela Bíblia, retratadas principalmente no livro do Apocalipse, e se condensaram, sobretudo, na ideia do Juízo Final – momento em que todos prestariam contas dos seus atos ao juiz supremo – Deus.
Alguns textos anteriores, no entanto, já haviam sinalizado o fim do mundo, livros como o de Isaías e de Daniel, que previam um período de paz e prosperidade, trazido por um messias; este reinaria em harmonia durante mil anos, período em que Satã estaria acorrentado. Depois disto a humanidade seria submetida ao Juízo Final.
Em seu livro História do medo no Ocidente, Jean Delumeau (2009) elenca um conjunto de textos posteriores à publicação da Bíblia que criaram uma atmosfera fatalística em torno do ano mil. Tais abordagens fizeram surgir o que intitulou-se milenarismo, ou seja, a crença de que a história humana está demarcada por intervalos de mil anos; sendo que ao fim de cada um destes períodos ocorreriam transformações de todas as ordens no universo.
A Sétima Profecia
Em "A Sétima profecia" (1988), as imagens e os acontecimentos da obra revelam um mundo em dissolução, à espera de ser ‘resgatado’ por um ser humano puro, bom, capaz de salvar toda humanidade com um gesto seu. É o que faz Abby – personagem principal do filme – quando decide doar sua alma ao filho, um natimorto, e assim evita que a profecia que prevê o fim do mundo se cumpra inteiramente.
A história utiliza algumas passagens do livro de Joel, considerado pelos cristãos como o livro do arrependimento. Por ter sido realizado em 1988, a 12 anos da virada do milênio, os autores de A Sétima profecia podem sim ter sido influenciados, ainda que inconscientemente, por ecos do milenarismo. Não é à toa que outros filmes do gênero estrearam na década seguinte, e foram sucessos de bilheteria.
No filme, percebemos a repetição do discurso sobre a necessidade do retorno de Deus a Terra para tentar ‘consertar’ o mundo, que já apresenta sinais de rachadura em seu sistema. A humanidade havia falhado mais uma vez; não correspondeu àquilo que pregava as escrituras sagradas. Mostrou-se desatenta às leis da criação. Deverá pagar.
Um anjo é enviado a Terra para realizar a vontade de Deus: destruir a humanidade. Tão pesada é a missão, mesmo para alguém a mando do próprio criador, que no início da película pensamos tratar-se do vilão da história; afinal de contas ao quebrar os selos ele dá início a uma série de catástrofes, que vão culminar com o fim do mundo.
Os sinais começam a ocorrer um por um: tempestades, enchentes, incêndios, fome, doenças, guerras, ganância desmedida, corrupção, entre outros. Ocorre um eclipse; o fim está próximo. O dia fica escuro como a noite. A música se amplifica, torna-se ensurdecedora; estão todos no meio de um terremoto; cai uma chuva de granizo. No meio disso tudo, surge a figura da mártir (Abby) que, ao doar sua própria vida, restaura a harmonia na Terra. O chão para de tremer, a música torna-se suave. A humanidade terá mais uma chance.
Final quase feliz; afinal a personagem principal teve que morrer.
A escatologia mencionada nos textos sagrados não abre espaço para final semelhante, já que a maior parte do planeta sucumbirá, e não haverá possibilidade de aparecer um mártir para desfazer uma das profecias. Assim está escrito, assim deve acontecer. Para o discurso religioso, a única possibilidade de salvar-se é seguir cegamente as leis de Deus.
A resposta do público às narrativas que utilizam o tema escatologia é imediata. Trata-se de rever nas telas do cinema, ampliado por todos os efeitos especiais, algo de que se tem conhecimento desde sempre. As religiões propagam o fim do mundo de maneira bastante alarmante. As crianças escutam em casa, na igreja, no colégio; o assunto se internaliza, mistura-se aos comandos do pensamento; toma para si um imaginário todo particular.
Jean Delumeau (2009) argumenta: “não foi por acaso que a escatologia que anunciava a iminência do Juízo Final foi difundida, sobretudo por aqueles dentre os homens de Igreja que estavam mais tomados pela preocupação pastoral. Isso é verdade especialmente para os grandes Reformadores protestantes”.
É do nosso conhecimento a supervalorização dada à escatologia por alguns segmentos religiosos. Isso pode nos levar a indagar sobre os motivos que os impulsionam a defender tão ardentemente tal ideário. Mas não o faremos aqui. Nosso trabalho contenta-se em perceber que o tema escatologia, embora desacreditado e desdenhado por muitos, é sem dúvida alguma, um dos assuntos que mais são abordados em nossa sociedade.
Provar, ou não, a veracidade das profecias; que elas aconteçam como predizem os textos sagrados, ou não, é o que menos importa. Aos que assistem às narrativas, bem como aos proponentes desta abordagem, o que realmente importa é entender a força que possui o pensamento humano. O inatingível, de tanto que falamos nele, de tanto que o estudamos, de tanto que o possibilitamos, pousa em nossas mãos, tornando-se tão próximo de nossas verdades primárias, que, se o mencionarmos, fazemos com que o interlocutor seja capaz de ‘tocá-lo’ de forma semelhante.
REFERÊNCIAS:
ARISTÓTELES. A arte poética. São Paulo: Martim Claret, 2003.
BLANK, R. J. Nosso mundo tem futuro. São Paulo: Paulinas, 1993.
DELUMEAU, J. História do medo no Ocidente 1300 -1800: uma cidade sitiada. Tradução: Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
DICIONÁRIO TEMÁTICO DO OCIDENTE MEDIEVAL / Coordenação: Jacques Le Goff e Jean-Claude Schmitt; coordenador da tradução: Hilário Franco Júnior. Bauru, SP: Edusc, 2006.
SCHULTZ, C; FIELD, T. A sétima profecia. Produção de Tedd Field; direção de Carl Schultz. EUA, Interscope Communications/TriStar Pictures / ML Premier Productions, 1988. DVD. 01hs. 37min. Color.