A escola ergonômica francesa: contribuições à compreensão da atividade docente
Daniela Leal
Atualmente a profissão docente nos países em desenvolvimento vem sofrendo, profundas e constantes, mudanças. Ora por intermédio do aumento da quantidade de alunos, ora pela demanda de qualidade escolar exigida, ora pela ausência de priorização político-econômica concreta da educação.
Segundo Davis e Aguiar (2010, n.p.), “as novas demandas requerem uma intensificação do trabalho do professor e uma ampliação de seu raio de ação que, na ausência de uma política clara de formação docente, tem gerado desgaste e insatisfação por parte do professorado”.
Para Gatti (1996), tais mudanças acabam por esquecer a base que retrata o modo de ser social do professor, ou seja, a sua identidade – que permeia o seu modo de estar no mundo e no trabalho dos homens em geral. Como descreve a autora, a identidade sempre deve ser levada em conta nos processo de formação e profissionalização docente, pois
a identidade não é somente constructo de origem idiossincrática, mas fruto das interações sociais complexas nas sociedades contemporâneas e expressão sociopsicológica que interage nas aprendizagens, nas formas cognitivas, nas ações dos seres humanos. Ela define um modo de ser no mundo, num dado momento, numa dada cultura, numa história. (GATTI, 1996, p. 86).
E, apesar de existirem questões que se colocam em virtude das condições socioculturais em que alunos e professores estão imersos, faz-se necessário resgatar que o professor, antes de qualquer coisa, “é uma pessoa de um certo tempo e lugar. Datado e situado, fruto de relações vividas, de uma dada ambiência que o expõe ou não a saberes, que podem ou não ser importantes para a sua ação profissional” (GATTI, 1996, p. 88).
Quando pensa-se a formação profissional do docente, portanto, não se pode esquecer que,
Toda formação profissional que prepara para o exercício de um ofício gera problemas complexos, particularmente quando essa formação visa a um ofício voltado para o humano, como o ensino, implicando domínio cognitivo de situações dinâmicas, gerenciamento de pessoas, autonomia e responsabilidades nas decisões, adaptabilidade e adequação sem erros a um contexto específico. (DURAND, SAURY e VEYRUNES, 2005, p. 38).
Nesse sentido, quando pensa-se na complexidade deste processo, faz-se necessário que tanto os professores quanto às produções científicas deixem de lado as hipóteses ou afirmações genéricas e busquem alternativas possíveis na direção de uma melhor qualidade da educação e do ensino. Ou, como afirmam Davis e Aguiar (2010, n.p.), “há a necessidade de rever as atividades docentes, qualificando-as e ampliando seus efeitos”.
Para tanto, utilizar-se-á para esta reflexão um conjunto de pressupostos retirados tanto da psicologia sócio-histórica como da ergonomia francesa, pois ambas as vertentes partem dos princípios do materialismo histórico e dialético, que concebe o homem como ser historicamente constituído e constituinte nas relações com a sociedade. E, nesta relação de idas e vindas é que o homem irá internalizar o mundo material e interpretá-lo dentro de sua subjetividade, pois ao mesmo tempo em que é histórico e social, também é individual.
A escola ergonômica ou a clínica da atividade
Partindo da afirmação de Clot (2006, p. 11) ao dizer que, quem se dedica a escrita sobre as relações entre trabalho e psicologia deve enfrentar um duplo problema: “o das transformações do próprio trabalho na sociedade e na vida pessoal, por um lado, e a do conjunto das contribuições da psicologia em termos de análise do trabalho, por outro”; a clínica da atividade ou a escola ergonômica francesa objetiva, portanto, compreender em que condição teórica e metodológica é possível a análise do trabalho. De acordo com o autor,
A atividade de trabalho é sempre mais do que um simples gesto realizado, passível de observação direta e mensurável para fins de avaliação de produtividade, pois envolve, também, tudo o que povoou o interior do sujeito (seus medos, suas angústias, seus saberes, seus desejos, as contraintes, etc.). (CLOT, 2001a apud MURTA, 2008, p. 46).
Murta (2008, p. 47) acrescenta, ainda, que a atividade de trabalho é “uma atividade histórica, constitutiva dos sujeitos humanos, construída e reconstruída a cada momento em que o trabalhador se vê diante de sua prática”. É, portanto, o trabalho o meio que produz bens materiais necessários à vida humana, além de ser fundamental para a sobrevivência das pessoas.
Entretanto, além da definição de trabalho, essencial à compreensão da escola ergonômica francesa ou clínica da atividade, faz-se necessário compartilhar compreender mais algumas categorias que contribuem para a tentativa de conhecer o processo de constituição do sujeito na atividade e para além da aparência: o real da atividade, a atividade real, o gênero e o estilo; pois, como afirmam Davis e Aguiar (2010, n.p.),
A atividade, na visão agora discutida, não se constitui apenas do que é realizado, mas também daquilo que não foi possível realizar. Daí a importância de se estar atento não só às ações realizadas e observadas, mas àquelas que foram pensadas, mas não realizadas pelo sujeito [...].
Durante a ação do homem no mundo existe uma atividade externa, o real da atividade, concomitante a uma atividade interna, que apesar de não aparecer está contida no sujeito, em sua subjetividade. De acordo com Clot, Faïta, Fernadez e Scheller (s.r.),
o real da atividade é também aquilo que não se faz, aquilo que se tenta fazer mas não se consegue [...] aquilo que se gostaria de ter feito ou de ter podido fazer, aquilo que se pensa poder fazer em outro lugar [...] aquilo que se faz para não fazer aquilo que deve ser feito.
Já, para compreender a atividade real, bem como a diferença que há entre esta e o real da atividade faz-se necessário compreender a categoria gênero. O gênero “[...] sempre se tratará das atividades ligadas a uma situação, das maneiras de ‘apreender’ as coisas e as pessoas num determinado meio [...]. [...] é também história de um grupo e memória impessoal de um local de trabalho” (CLOT, 2006, p. 38).
O gênero, portanto, leva em conta tanto o arsenal de procedimentos e posturas construídas em um campo profissional no decorrer do processo sócio-histórico e cultural como as possíveis mediações que concorrem para a realização da atividade [...]. Desta forma, o gênero é necessariamente social e não se apresenta nunca cristalizado: está em constante movimento, uma vez que suas regras e posturas são continuamente construídas na e pela atividade. (DAVIS e AGUIAR, 2010, n.p.).
Ao mesmo tempo em que o gênero é um recurso para responder as exigências da ação, é também um objeto de ajustes e retoques por parte daqueles que o utilizam. E, “é esse trabalho de ajuste do gênero, para transformá-lo em instrumento da ação, que chamamos de estilo da ação” (CLOT, FAÏTA, FERNADEZ e SCHELLER, sem referência). Assim, o estilo é “um ‘misto’ que descreve o esforço de emancipação do sujeito, diante da memória impessoal e diante de sua memória singular, e o esforço buscando sempre a eficácia do trabalho”. Segundo Davis e Aguiar (2010, n.p.), pautadas em Clot (2006),
O estilo pessoal é um “jeito” de fazer singular e, ao mesmo tempo, social e histórico. É ele que, de certa forma, contribui para o movimento contínuo e constante de renovação e reconstrução do gênero que, ao ser interiorizado, colabora para a transformação do próprio sujeito.
Alguns exemplos que comprovam a contribuição da escola ergonômica francesa à atividade docente, são os trabalhos realizados por Rachman (2013), ao desenvolver uma modalidade de formação docente em conjunto com as professoras envolvidas na pesquisa, na tentativa de oferecer-lhes subsídios para a realização de trabalhos diversificados junto aos alunos e, em particular, com uma das professoras, ao identificar, por intermédio dos procedimentos da ergonomia francesa ou da clínica da atividade, às necessidades e os aspectos centrais da cultura institucional, bem como os aspectos frágeis e os avanços conquistados durante à reflexão conjunta sobre a atividade realizada pela docente e a ressignificação dada a sua própria atividade ao longo do percurso. Permitindo, assim, reafirmar a importância de uma das afirmações iniciais: a colaboração entre pesquisadores e professores para o aprimoramento da atividade/formação docente.
Outro trabalho é o de Soares (2011) ao apreender os sentidos constituídos pelo professor acerca do seu modo de mediar e ser mediado pela participação dos alunos em atividades realizadas em sala de aula. Ao utilizar-se da proposta metodológica da autoconfrontação descrita por Clot, Soares ressalta que, além das condições objetivas do ensinar e do aprender, faz-se necessário considerar que o estado psicológico dessas pessoas também constitui qualidade da sua participação, permitindo, assim, abstrair muitas das mediações que têm constituído as suas motivações e os sentidos constituídos à atividade docente.
Barbosa (2011), utilizando-se da mesma proposta metodológica que Soares (2011), autoconfrontação, conseguiu identificar e apreender os sentidos e significados produzidos pela professora de uma escola pública acerca da sua atividade pedagógica, principalmente focando-se nas estratégias de ensino utilizadas por ela durante as aulas. A percepção, a análise e a teorização a respeito dos movimentos da professora, segundo Barbosa, permitiu a produção de reflexões teóricas sobre a atividade pedagógica e o fortalecimento das discussões sobre a atividade docente nos cursos de formação de professores.
Murta (2008), uma das primeiras a iniciar o uso deste tipo de proposta metodológica no grupo de pesquisa da PUC-SP, conseguiu perceber que, por intermédio da aplicação da autoconfrontação disseminada por Clot, o sujeito, no caso uma professora com aluno com deficiência em sala de aula regular, quando é instigado a falar por meio de questionamentos sobre a atividade realizada, reflete, mobiliza-se, entra em conflito e gesta possibilidades de mudança, consequentemente de ressignificação de sua atividade docente.
Descritas as categorias e exemplos da aplicação da clínica da atividade, chega-se à conclusão que se pode começar à pensar que a análise da atividade docente pautada nos princípios da escola ergonômica francesa, permitirá compreender o quanto à mediação do gênero e do estilo pessoal constituem a atividade dos professores que serão pesquisados, alcançando, assim, uma apreensão mais completa e precisa da atividade docente, consequentemente avançando para as zonas de sentidos constituídas pelo trabalho.
Referência Bibliográfica:
BARBOSA, S. M. C. Atividade do Professor em Sala de Aula: uma análise das estratégias de ensino a partir da psicologia sócio-histórica. Tese (Doutorado em Educação: Psicologia da Educação) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2011.
CLOT, Y. A Função Psicológica do Trabalho. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006.
CLOT, Y.; FAÏTA, D.; FERNANDEZ, G.; SCHELLER, L. Entrevistas em autoconfrontação cruzada: um método de clínica da atividade. Sem referência.
DAVIS, C.; AGUIAR, W. M. J. Superando a dicotomia saber-ação: uma nova proposta para a pesquisa e a formação docente. 33ª Reunião Anual da ANPED. Anais da 33ª Reunião... Caxambu, 2010. Disponível em: https://33reuniao.anped.org.br/33encontro/app/webroot/files/file/Trabalhos%20em%20PDF/GT20-6139--Int.pdf. Último acesso em: 21 out. 2015.
DURAND, M.; SAURY, J.; VEYRUNES, P. Relações fecundas entre pesquisa e formação docente: elementos para um programa. Cadernos de Pesquisa. São Paulo, n. 125, vol. 35, pp. 37-62, maio/ago. 2005.
MURTA, A. M. G. Da Atividade Prescrita ao Real da Atividade: análise da atividade docente em uma escola regular, sob a perspectiva da Psicologia Sócio-Histórica e da Clínica da Atividade. Tese (Doutorado em Educação: Psicologia da Educação) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2008.
RACHMAN, V. C. B. Enfrentando a lógica do homogêneo: aspectos centrais para um trabalho diversificado junto aos educandos. Tese (Doutorado em Educação: Psicologia da Educação) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2013.
SOARES, J. R. Atividade Docente e Subjetividade: sentidos e significados construídos pelo professor acerca da participação dos alunos em atividades de sala de aula. Tese (Doutorado em Educação: Psicologia da Educação) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2011.