Ecos do Absolutismo Ibérico VI - O privilégio de foro
Ecos do Absolutismo Ibérico VI - O Privilégio de Foro
Doutor Mario Villas Boas
Nos cursos de Direito aprendemos que a expressão “foro privilegiado” ou “privilégio de foro” não é uma expressão feliz. Quando estudamos Direito, somos instados a usar a expressão “foro por prerrogativa de função” em lugar das duas anteriores uma vez que aquelas sugerem a existência de um privilégio, o que não se admite num regime democrático.
De fato. Num regime verdadeiramente democrático não devem existir privilégios. Ocorre que na nossa pseudo democracia neo-ibérica eles existem. E o “foro por prerrogativa de função” foi montado cuidadosamente para ser um dos mais odiosos e injustificáveis privilégios dos donos do poder deste neo-absolutismo que se pretende democrático.
O “foro por prerrogativa de função” parece, numa análise superficial, uma medida acertada e compatível com a democracia. Vejamos um exemplo simples: Se um juiz de direito toma uma decisão que uma das partes envolvidas não aceita, por considerá-la contrária aos ditames da lei, somente uma autoridade judiciária de uma instância superior pode modificá-la. Assim, somente a instância superior tem autoridade para determinar que o ato foi ilegal. Se esse ato foi fruto de um crime – por exemplo, se o juiz da instância inferior aceitou suborno para tomar uma decisão contrária à lei para prejudicar uma das partes – então o julgamento do crime está condicionado ao atestado de ilegalidade da decisão que só a autoridade judiciária superior pode dar. Assim, parece razoável que somente a segunda instância possa julgar um juiz de primeira instância por crimes que este venha a cometer. Isto vem reforçado pelo fato de que, ao menos em comarcas pequenas, onde só há um juiz, se não fosse assim, um eventual crime cometido pelo juiz teria que ser julgado pelo próprio acusado.
Partindo-se de que o titular do poder judiciário tem essa prerrogativa e que os titulares dos poderes executivo e legislativo se equiparam, em termos de autoridade, aos titulares do poder judiciário, se estendeu para aqueles o privilégio de foro do destes últimos. Num primeiro momento, tudo parece razoável. Mas, no Brasil, como tantos outros institutos, este foi montado cuidadosamente com o objetivo de jamais funcionar.
O que acontece quando um processo se inicia numa instância e, após vários atos processuais, o réu adquire – ou perde – o cargo que lhe confere o “foro por prerrogativa de função”? Como com a aquisição ou a perda do cargo, por lei, o foro competente para o julgamento passa a ser outro, o processo é remetido para a nova instância que, com a nova condição, passou a ser a instância competente para o julgamento do caso. Parece razoável? Seria, não fosse nossa terrível tradição de criar instituições “para inglês ver” em lugar de para funcionarem em favor do povo.
No processo civil ou no processo penal, é admissível a presença do assistente. O assistente é uma pessoa que não tem a condição de parte no processo, mas tem – juridicamente – interesse em seu resultado. Admitida à legitimidade do interesse desta pessoa, pode a mesma inscrever-se para atuar como assistente da parte que deseja ver vitoriosa. Ao fazê-lo, pode a mesma praticar atos processuais como se fosse a parte que quer ver vitoriosa. Ainda que a parte assistida possa, eventualmente, não concordar com tais atos.
Sobre a assistência, determina o Código de Processo civil:
Art. 50. Pendendo uma causa entre duas ou mais pessoas, o terceiro, que tiver interesse jurídico em que a sentença seja favorável a uma delas, poderá intervir no processo para assisti-la.
Parágrafo único. A assistência tem lugar em qualquer dos tipos de procedimento e em todos os graus da jurisdição; mas o assistente recebe o processo no estado em que se encontra.
No mesmo sentido, o Código de Processo Penal estabelece:
Art. 268. Em todos os termos da ação pública, poderá intervir, como assistente do Ministério Público, o ofendido ou seu representante legal, ou, na falta, qualquer das pessoas mencionadas no Art. 31.
Art. 269. O assistente será admitido enquanto não passar em julgado a sentença e receberá a causa no estado em que se achar.
O ingresso do assistente, tanto no processo civil como no processo penal pode modificar o rumo de qualquer deles inclusive seu resultado. Contudo, a lei é expressa: O assiistente recebe o processo “no estado em que se achar”. Ou seja, ainda que assistente tenha interesse em modificar um ato processual pregresso, não poderá fazê-lo. Para isso teria que ter ingressado antes que o ato fosse praticado e, assim, interferir em sua prática para que o mesmo fosse praticado da forma que lhe conviesse.
A interpretação analógica desses dispositivos nos levaria a concluir que se, pela aquisição ou perda do “foro por prerrogativa de função”, o processo tivesse que ser remetido para a prática de novos atos processuais em outra instância, a nova instância deveria receber o processo no estado em que se encontrasse, assim como o assistente ao ingressar no processo civil ou criminal. Mas não é assim. Se o processo mudar de instância por este motivo, todos os atos processuais já praticados serão considerados nulos e o processo se inicia novamente na nova instância a que foi designado. O mais curioso de tudo é que não existe nenhuma disposição legal estabelecendo isso. Esta interpretação, contudo, é uma jurisprudência reiterada e consagrada dos Tribunais Superiores, notadamente da Corte Suprema.
Esta medida, que é uma jurisprudência, a meu ver, contrária ao disposto em lei, foi concebida sob medida para criar uma absoluta impunidade para os donos do poder. Sabemos que nas instâncias superiores, as coisas acontecem mais lentamente do que nas instâncias inferiores. Isso, por si só já cria um risco do crime prescrever ao ser remetido para a instância superior. Mas se a mudança de instância faz o processo voltar para o início, então, nos raros casos em que um processo contra alguma alta autoridade de um dos três poderes ameaçarem chegar ao fim, basta que a mesma renuncie. A renúncia fará com que o réu perca seu “foro por prerrogativa de função” obrigando a que o mesmo seja remetido à primeira instância, onde terá que ser reiniciado. Se, por algum milagre, esse processo conseguir chegar próximo de seu desfecho, basta que algum amigo o nomeie secretário de Estado ou algo assim para que uma nova mudança de instância obrigue o processo a recomeçar de novo. E assim prossegue a dança das instâncias até que o crime prescreva.
Se realmente quisermos que os titulares dos poderes sejam julgados por crimes que possam ter cometido antes ou durante o exercício de suas funções, o mais urgente e imprescindível é que estabeleçamos por lei que qualquer mudança de instância ou procedimento não anule os atos processuais praticados anteriormente, recebendo a nova instância o processo no estado em que estiver. Quanto ao fórum apropriado, parece-me que o ideal seja que os titulares dos poderes sejam sempre, obrigatoriamente, julgados por tribunal do júri, mesmo em casos em que o réu sem essa condição fosse julgado por juiz singular. Mas, essa ou outra solução exige que nosso povo se conscientize da necessidade de que exista uma forma prática de julgarmos criminal e civilmente titulares do poder. Que deixemos e considerar essas pessoas como inatingíveis pela lei.