CURRÍCULO E DIVERSIDADE EM PAUTA - Entrevistada: Profa. Dra. Lucimar Araújo Braga

16/06/2023 12:02

 

Educar para a diversidade na sociedade contemporânea

 

Por Fábio Antônio Gabriel

 

A entrevistada por Fábio Antônio Gabriel (www.fabioantoniogabriel.com) tem uma trajetória memorável de dedicação ao debate amplo sobre a questão da relação entre Currículo e Diversidade. Embora formada na área de Letras, suas pesquisas debatem outras temáticas, fundamentais para a sociedade contemporânea, entre elas: currículo e formação de professores, diversidades de expressão do pensamento e formação de professores de letras. O leitor, deparar-se-á nesta entrevista com uma busca constante com o fato de que não trata-se apenas de uma teórica sobre educação, mas de alguém que tem uma trajetória marcante na promoção dos direitos humanos e da ética na sociedade contemporânea.

 

Poderia nos falar sobre sua trajetória como professora e pesquisadora na Universidade Estadual de Ponta Grossa?

Lucimar Braga -  Eu cursei Letras depois de casada e com duas filhas. Terminei meu curso de graduação e já comecei a trabalhar em uma faculdade privada e nesta mesma época comecei a cursar uma espacialização latu sensu na UEPG. Ao começar o curso de espacialização estavam abertas as inscrições para concurso na UEPG, imediatamente me inscrevi, fiz o concurso e fui aprovada. Estou nesta instituição de ensino superior desde 2002, sendo que conclui meu curso em 2000 e peguei o diploma em 2001. Então, entrei na UEPG concursada em 2002 apenas com a minha graduação. Desde o início me interessei pelo ensino, pela pesquisa e extensão de modo que trabalho com a indissociabilidade ensino, pesquisa e extensão desde 2002. Não consigo pensar que eu seja somente pesquisadora ou somente extensionista ou apenas professora de sala de aula. Além disso, no mesmo ano de meu ingresso na UEPG eu passei a ter o tempo integral de dedicação exclusiva (TIDE), de modo que não atuei mais em nenhuma outra instituição. Outra característica que sempre tive foi de atuar na parte administrativa e então atuo na administração da instituição desde o ano de 2003 com alguma função. Isso dificultou um pouco o segmento dos meus estudos, pois, terminei a especialização em 2004, foi um curso proposto para ser cumprido nas férias. A partir daí segui com algumas funções e resolvi cursar um mestrado também de férias, em Assunção. Fiquei bem animada por ser em espanhol a língua que eu havia estudado juntamente com português no meu curso de Letras. Ocorre que conclui o curso, mas nunca consegui convalidar o diploma no Brasil. Novamente tive que recomeçar e passei a fazer disciplinas da pós-graduação, no Brasil, para tentar o mestrado nacional. Cursei o mestrado nos estudos da linguagem e o doutorado em educação, os dois na UEPG. Mesmo estando em atividades na pós-graduação nunca me afastei dos cargos administrativos, cursei o mestrado e o doutorado sem afastamento. Desta forma, estou na UEPG há 21 anos e nunca tirei uma licença para formação. Já passei por quase todas as instâncias administrativas de uma instituição que podem ser ocupadas por professores. Já fui membro e coordenadora de colegiado, membro e coordenadora de Núcleo Docente e Estruturante, integrei comissões para realização de testes seletivos e concursos internos e externos, fui vide diretora e diretora de setor de conhecimento. Atuei como membro e na diretoria da Comissão Permanente das Licenciaturas (COPELIC), fui membro do Conselho de Ensino Pesquisa e Extensão (CEPE), membro e coordenadora de comissão para reformulação de currículo e neste tempo todo estive envolvida com o ensino, a pesquisa e a extensão. Tive pesquisa continuada e projeto de extensão concomitantes, mas aprendi que não preciso de tantas frentes abertas para trabalhar na indissociabilidade do ensino, da pesquisa e da extensão. Posso ter uma pesquisa continuada e a partir dela posso desenvolver a extensão no formato de cursos e eventos extensionistas. Desde 2016 coordeno o Grupo de Estudos Curriculares e Diversidades (GECED) que atua com acadêmicos, professores da instituição e da rede básica de educação, além de ser aberto para a comunidade em geral, já tivemos alunos da educação básica. Então, conforme a resposta entrega não faço apenas pesquisa, minha vida e perpassada pela indissociabilidade ensino, pesquisa e extensão. Atualmente também estou como coordenadora do curso de Letras na modalidade EAD e desenvolvo todas as outras funções como pesquisadora, extensionista e professora de graduação e pós-graduação.

 

Na sua visão, quais os maiores desafios que vemos na sociedade contemporânea para pensar nas questões de currículo e diversidade?

Lucimar Braga -  Neste momento o maior entrave é a BNCC/2017 porque este documento travou qualquer possibilidade de trabalhar com a diversidade na sala de aula. Temas como gênero e sexualidade não aparecem na BNCC/2017 o que dificulta qualquer possibilidade de pensar um currículo inclusivo para a diversidade. Evidentemente que isso no patamar da educação básica, porque os Projetos Pedagógicos de Cursos – PPC de curso superior começam a apresentar um currículo mais inclusivo com a inserção de disciplinas que abordam a diversidade, o curso de Letras da UEPG, tanto na modalidade presencial como a distância contam com a inserção de temas como:

O ensino, a aprendizagem e a diversidade de gênero e sexualidade no currículo
educacional;

Educação e sustentabilidade no ensino e na aprendizagem das linguagens;

Identidade e diversidade de linguagens: políticas linguísticas;

Pessoa com deficiência, raça, etnia e classe social nos estudos de linguagens;

Língua Brasileira de Sinais;

Então, são disciplinas que abordam algumas diversidades, coisa que na BNCC/2017 essas temáticas, não caberiam.

 

Qual foi a tese que defendeste no doutorado em educação que cursastes?

Lucimar Braga -  Relações de currículo na formação inicial de professores: uma análise a partir das concepções de licenciandos do curso de letras. Esta pesquisa foi o início do meu contato com as questões do currículo, no mesmo ano que iniciei meus estudos com currículo eu organizei um grupo de estudos em currículo, o GECE para debater a temática do currículo, assim, no ano seguinte começaram a aparecer os temas da diversidade, principalmente   sobre gênero e sexualidade os que me levou a inserir o D de diversidade, a partir daquele momento o Grupo de Estudos em Currículo Educacional passa a ser o GECED, desde então, o meu trabalho está voltado para os estudos com o currículo e as diversidades.

 

Na sua visão, há muito preconceito ainda em relação a opção sexual das pessoas?

Lucimar Braga -  A minha opinião sobre isso é que sim, existe muito preconceito, mas felizmente os estudos com a diversidade na universidade, tem proporcionado mais reflexões. Entretanto, isso não garante que a BNCC/2017 seja transformada, precisamos encontrar uma forma de levar os debates e reflexões sobre a questão da sexualidade para as escolas. Entendo que a educação seja básica ou superior é o local em que as pessoas possam abordar a questão da diversidade de gênero e sexualidade, sem a conotação da barbárie que infelizmente os partidos de extrema direita adotam, já estes posicionamentos fundamentalistas e preconceituosos acabaram excluindo estes temas tão necessários para serem debatidos na educação.

 

Como você entende a questão das determinações curriculares que muitas vezes não atendem a uma visão de diversidade na sociedade?

Lucimar Braga -  Eu entendo que é preciso lermos mais autores/as que estão tratando desta temática, por exemplo no Brasil existe uma produção de livros que abordam a questão da sexualidade de forma histórica que nos proporcionam entender a estrutura social do Brasil, quando falamos se sexualidade, se as pessoas lessem, por exemplo, João Silvério Trevisan poderiam entender como funciona essa questão da diversidade de gênero e sexualidade, para compreenderem por exemplo, que o currículo é extremamente seletivo. Um currículo educacional, em geral, é pensado por duas ou três pessoas da escola e na universidade não é diferente. As pessoas que atuam na educação não se preocupam em tentar entender como é formado um currículo, um exemplo disso é que quando comecei a trabalhar com o tema currículo eu trouxe um professor que já pesquisava sobre o currículo, para uma fala para as pessoas do curso de Letras da UEPG, muitas destas pessoas que formam um curso superior liam currículo como algo que apresenta as disciplinas que formam o curso. Ou seja, um documento que apresenta apenas a lista de disciplinas não pode ser um currículo educacional, porque é muito mais que isso. Se a própria comunidade acadêmica não tem entendimento sobre o que é currículo, como a sociedade terá clareza da importância de trabalhar com a diversidade de gênero e sexualidade, desde muito cedo na escola. 

 

Do ponto de vista legal, as minorias conseguiram grandes espaços legais, isso implicou em mudanças curriculares?

Lucimar Braga -  Conforme venho discorrendo nas respostas anteriores, as leis não garantem sua aplicação, um exemplo disso é a BNCC/2017, um documento retrógrado que exclui qualquer possibilidade de pensar um currículo includente. Mas, com certeza as minorias estão mais amparadas como é o caso da lei Maria da Penha para as mulheres que sofrem com os machistas. O estatuto da pessoa com deficiência de 2015 é outro exemplo que garante os direitos para estas pessoas, mas que não é realidade em toda a rede de educação básica. As salas especiais ainda são realidade nas escolas e na universidade tem chegado pessoas com deficiência, mas ainda faltam professores especializados para o atendimento destas pessoas. Em geral, o Estado promulga as leis, mas não efetivam a aplicabilidade, ficando esta função para a escola. A Libras é realidade na educação, mas não há professores para todos os cursos e também não há interpretes. Enfim, ainda há uma longa jornada para que o currículo educacional seja mais democrático.

 

Como professora que trabalha com formação de professores como você analisa a questão da formação de docentes no contexto brasileiro?

Lucimar Braga -  Eu enquanto professora formadora de professores sinto que o desafio é enorme. Eu iniciei minha atuação no magistério com as séries iniciais, mas percebi que queria atuar no ensino superior e tracei minha formação para me tornar professora universitária. Antes de eu atuar, a sala de aula da universidade me parecia um lugar ideal para dar aulas, mas quando percebi o tamanho da minha responsabilidade eu vi que realmente o ideal deu lugar para o real. Se eu não consegui dar aulas para as crianças, agora eu precisava formar pessoas motivadas a serem professores na educação básica e isso no Brasil é um desafio enorme. Primeiramente, é preciso trabalhar com a questão arraigada na sociedade brasileira de que ser professor não é ter uma profissão e sim uma missão, quase um sacerdócio, uma vocação, Lelis (2014).    Ora, evidentemente que todas as pessoas que se dispuserem a trabalhar com alguma função, precisam ter certa simpatia pelo trabalho, mas daí a dizer que para ser professor é preciso ter vocação é muito cruel para com os/as professores/as. 

 

De modo geral, percebe-se uma dificuldade de pagamento da remuneração mínima de professores que seria o pagamento do piso salarial dos professores, você acredita que isso é consequência da desvalorização profissional docente no contexto internacional?

Lucimar Braga -  Os governos jogam com a educação para manipular a opinião pública. Um exemplo disso é o atual índice do estado do Paraná, sobre avaliação em educação. Para a constatação desta afirmação basta ver televisão aberta que lá está a publicidade sobre o PR ter a melhor educação do país, na atualidade. Outra forma de evidenciar isso é circulando pelas ruas, porque há outdoors espalhados pelas ruas das cidades paranaenses. Essa ideia de melhor educação vendida pelo governo, acaba passando uma percepção de que os/as professores/as do Paraná, por exemplo, são bem remunerados/as, afinal o índice de avaliação demonstra essa realidade. Infelizmente, sabemos que não se trata de uma realidade, porque as avaliações aplicadas no Brasil, em geral, buscam números positivos para responderem aos interesses capitalistas, que estão atreladas ao mercado financeiro e econômico. Sabe-se que a partir da década de 1990 as avaliações ganham maior evidência na educação e a educação básica do Paraná ganha relevância nestas avaliações, em 2019 o Paraná experimentou um bom índice em suas avaliações, resta lembrar que o governo estadual teve como secretário o senhor Renato Feder, grande empresário da área de informática.  Esta pessoa inseriu plataformas educacionais na educação básica que culminou com uma excelente aprovação, principalmente por conta da pandemia que chega ao final de 2019, no Brasil, paralisando as atividades presenciais em quase todas as instâncias e na educação também. Para o governo do Paraná a pandemia foi uma boa estratégia para a implementação das plataformas digitais e tanto foi assim que, este estado foi o primeiro estado do Brasil a seguir com as aulas no formado remoto, no ano de 2020. É muito interessante para os governos manterem um povo que segue a manada sem questionar, ainda mais se os índices avaliativos passam índices numéricos altos de aprovação nas avaliações - que são uma forma de controle por grandes organizações que dominam a economia no mundo.  Dessa forma, quem vai se preocupar se um/a professor/a ganha pouco, se os índices de aprovação em escola nacional são altos. Por isso, eu acredito que o salário baixo dos/as professores/as brasileiros sofrem sim a influência do contexto internacional, além de ser timbrado por interesses locais como é o caso de governos que não têm interesse em ter pessoas que pensam e questionam, mas sim é mais fácil mantar um rebanho que segue a multidão de fake news que se propagam com as mais diversas inverdades, no país.

 

Na sua visão, quais os impactos das políticas públicas educacionais neoliberais no currículo nas diversas esferas?

Lucimar Braga -  Existe uma política adotada no Brasil sobre a educação que diz que esta está em crise. Desde que comecei a cursar uma licenciatura na década de 1990 eu acompanho artigos, livros e programa de televisão que afirmam que a educação está em crise. Para Santomé (2001, p. 52) “As instituições escolares e o professorado chegam assim a converter-se num dos nós gordianos das causas e soluções para os problemas que as economias nacionais e internacionais têm colocados. Os bombardeamentos discursivos insistem uma e outra vez em estabelecer ligações directas entre sistemas educativos e produtividade dos mercados.” Além disso, as reformas que são propostas na educação em geral, são voltadas para uma supervalorização do conservadorismo o que não proporciona os movimentos necessários para a promoção de uma educação crítica e de qualidade, conforme propunha Paulo Freire. O mundo vive um momento difícil desde a década de 1930, quando Hitler subiu ao poder e impôs o nazismo. Nas palavras de Adorno, depois do holocausto o mundo nunca mais seria o mesmo e é isso que temos visto a cada dia com o avanço do neoliberalismo pelo mundo. Os currículos educacionais reproduzem à realidade vivenciada por seu povo, no Brasil, por exemplo, a atual BNCC/2017 segue ao modelo social e político vivido nos últimos dez anos. O avanço da representação religiosa, do agronegócio de monocultura e dos defensores das armas na política brasileira só ampliou a negação à diversidade na educação. Assim, é inevitável a interferência do neoliberalismo na educação da forma mais cruel possível, pois, além de ajudar a manutenção de pessoas analfabetas funcionais ainda incentivam a formação reprodutiva de ideais conservadores.

 

Educar para direitos humanos seria algo importante na sociedade contemporânea, tendo em vista, que o olhar a partir dos direitos humanos propicia diversas reflexões de respeito à dignidade da pessoa humana independente de opções de sua realidade particular e individual?

Lucimar Braga -  Inicio esta resposta com a minha manutenção da utopia em uma educação de qualidade sendo crítica e formadora de opiniões que possam contestar modelos pré-estabelecidos. Evidentemente que se a Constituição Brasileira fosse respeitada, a educação seria muito mais humana. Hoje, existem as legislações que foram sendo inseridas no documento inicial que possibilitam maior garantia de preservação dos direitos humanos, mas infelizmente ter uma legislação mais atualizada em termos de garantias dos direitos humanos não garante o desenvolvimento voltado para a preservação dos direitos e do respeito à dignidade da pessoa. Vemos isso com o aumento dos índices de feminicídio em todo o país; com o agravamento ao racismo que cada vez mais é praticado na frente das câmeras, além da homofobia aberta e declarada. Todas estas ações se agravem diante das extremidades políticas vivenciadas em todo o mundo com a ascensão de governos de extrema direita. Por isso, educar para os direitos humanos com uma educação pautada na cooperação seria uma forma de respeito entre as pessoas.